Foram semanas a rezar até me aperceber do absurdo e crueldade da minha oração. Dizia- Lhe eu que nada do que faço, digo ou penso é inspirado em más intenções, que procuro invariavelmente a via do pacifismo e do respeito mútuo em todas as áreas da minha existência, que sei pôr o próximo em primeiro lugar, esquecendo-me tantas vezes de mim... e que, como tal, não merecia ver-me sujeita à provação de ter um filho diferente da norma. Tão cruel!... Tanto narcisismo!... Tamanha barbaridade!... E esse filho mereceria que mãe?! Esse filho, eventualmente diferente, não teria justamente direito à mais virtuosa das mães???!!! Não é razoável pensar que se os filhos fossem atribuídos aos pais de acordo com o perfil humano de cada um, e de acordo com as virtudes dos seus progenitores, então os filhos com necessidades especiais deveriam ficar, invariavelmente, com os melhores pais?! Se me considero assim tão virtuosa, não era comigo que deveria ficar um qualquer miúdo, marcado por uma qualquer trissomia?! Ou serei eu suficientemente hipócrita para inverter de repente a lógica do jogo e vir agora suplicar um menino “normal”, porque não faltarão mães a quem a vida pode castigar no meu lugar?!
Envergonhou-me a minha oração, sim. Não era nada daquilo que queria dizer. Nem eu sou um exemplo, nem há filhos de um Deus menor. Na verdade, Deus nem tem nada a ver com isto, como não teve nada a ver com o carro que espatifei há mais de um mês, como não teve nada a ver com o empadão que deixei queimar no forno, e tem muito mais que fazer do que defender-me a roupa que inadvertidamente mancho com lixívia.
Cheguei a arrepender-me de ter feito o rastreio pré-natal integrado. Com a primeira colheita de sangue às 12 semanas e a segunda só às 15, o resultado chegará por volta das 17 semanas de gravidez. Posto isto, temos dois cenários como hipótese: ou o resultado é negativo e fica tudo em paz, gozando finalmente em descontraída felicidade o que resta desta gravidez; ou cai-nos o céu em cima, com um resultado positivo. Então, mais dois cenários possíveis: prosseguimento da gravidez ou interrupção da mesma, caso a amniocentese confirmasse o pior. Mas... às 17/18 semanas de gravidez?! Tanto quanto apurei, esta “interrupção” atinge o limiar da brutalidade e violência que um aborto pode assumir. Tanto quanto julgo saber, tratar-se-ia, na prática, de uma indução de parto de nado morto. Eu teria de parir o filho que não quis, morto. O feto está já demasiadamente desenvolvido para se proceder ao chamado aborto terapêutico, por aspiração e/ou curetagem... Reparem bem que já não aceno com as minhas virtudes, muito pelo contrário... é de defeitos ou vícios de carácter que falo agora (?). Estou a declarar-me incapaz de um aborto, não por pura virtude cristã, mas por simples falta de coragem. Não é a uma mãe plena de qualidades morais que um filho meu, diferente, teria de agradecer a vida, mas a uma mãe frouxa, cobarde... Se calhar era agora que a hipocrisia ou o cinismo voltavam a fazer falta para dizer qualquer coisa do género: “Não acabei contigo, filho, porque já te amava muito, porque o valor da vida é supremo, porque já te queríamos muito junto de nós, viesses como viesses...” Às vezes pergunto-me se não será isto que penso, de facto. Não sei. Estou a ser verdadeira. Sei que não sou capaz. Não sou. Não. Para que fiz então o rastreio? Para que entreguei aquela fortuna ao laboratório? Faria sempre. Pagaria ainda mais, se mo pedissem. Porque, tal como vou querer saber se foi ao X ou ao Y que aquele cromossoma se combinou, para poder dar destino àquelas camisinhas de gola redonda, debruadas a grega cor-de-rosa; também tenho de me preparar para a eventualidade do cromossoma 21 aparecer acidentalmente copiado. Se um menino me obrigaria à reformulação de um guarda-roupa, que dizer de uma trissomia 21?
Sem dramatismos, procuro agora outras palavras para a minha oração. Se a preparação que se impõe para este nascimento tiver de ir muito além dos trapos, Deus, daqui fala a S.: ajuda-me.
Envergonhou-me a minha oração, sim. Não era nada daquilo que queria dizer. Nem eu sou um exemplo, nem há filhos de um Deus menor. Na verdade, Deus nem tem nada a ver com isto, como não teve nada a ver com o carro que espatifei há mais de um mês, como não teve nada a ver com o empadão que deixei queimar no forno, e tem muito mais que fazer do que defender-me a roupa que inadvertidamente mancho com lixívia.
Cheguei a arrepender-me de ter feito o rastreio pré-natal integrado. Com a primeira colheita de sangue às 12 semanas e a segunda só às 15, o resultado chegará por volta das 17 semanas de gravidez. Posto isto, temos dois cenários como hipótese: ou o resultado é negativo e fica tudo em paz, gozando finalmente em descontraída felicidade o que resta desta gravidez; ou cai-nos o céu em cima, com um resultado positivo. Então, mais dois cenários possíveis: prosseguimento da gravidez ou interrupção da mesma, caso a amniocentese confirmasse o pior. Mas... às 17/18 semanas de gravidez?! Tanto quanto apurei, esta “interrupção” atinge o limiar da brutalidade e violência que um aborto pode assumir. Tanto quanto julgo saber, tratar-se-ia, na prática, de uma indução de parto de nado morto. Eu teria de parir o filho que não quis, morto. O feto está já demasiadamente desenvolvido para se proceder ao chamado aborto terapêutico, por aspiração e/ou curetagem... Reparem bem que já não aceno com as minhas virtudes, muito pelo contrário... é de defeitos ou vícios de carácter que falo agora (?). Estou a declarar-me incapaz de um aborto, não por pura virtude cristã, mas por simples falta de coragem. Não é a uma mãe plena de qualidades morais que um filho meu, diferente, teria de agradecer a vida, mas a uma mãe frouxa, cobarde... Se calhar era agora que a hipocrisia ou o cinismo voltavam a fazer falta para dizer qualquer coisa do género: “Não acabei contigo, filho, porque já te amava muito, porque o valor da vida é supremo, porque já te queríamos muito junto de nós, viesses como viesses...” Às vezes pergunto-me se não será isto que penso, de facto. Não sei. Estou a ser verdadeira. Sei que não sou capaz. Não sou. Não. Para que fiz então o rastreio? Para que entreguei aquela fortuna ao laboratório? Faria sempre. Pagaria ainda mais, se mo pedissem. Porque, tal como vou querer saber se foi ao X ou ao Y que aquele cromossoma se combinou, para poder dar destino àquelas camisinhas de gola redonda, debruadas a grega cor-de-rosa; também tenho de me preparar para a eventualidade do cromossoma 21 aparecer acidentalmente copiado. Se um menino me obrigaria à reformulação de um guarda-roupa, que dizer de uma trissomia 21?
Sem dramatismos, procuro agora outras palavras para a minha oração. Se a preparação que se impõe para este nascimento tiver de ir muito além dos trapos, Deus, daqui fala a S.: ajuda-me.