terça-feira, 4 de setembro de 2007

Deus, daqui fala a S.

Foram semanas a rezar até me aperceber do absurdo e crueldade da minha oração. Dizia- Lhe eu que nada do que faço, digo ou penso é inspirado em más intenções, que procuro invariavelmente a via do pacifismo e do respeito mútuo em todas as áreas da minha existência, que sei pôr o próximo em primeiro lugar, esquecendo-me tantas vezes de mim... e que, como tal, não merecia ver-me sujeita à provação de ter um filho diferente da norma. Tão cruel!... Tanto narcisismo!... Tamanha barbaridade!... E esse filho mereceria que mãe?! Esse filho, eventualmente diferente, não teria justamente direito à mais virtuosa das mães???!!! Não é razoável pensar que se os filhos fossem atribuídos aos pais de acordo com o perfil humano de cada um, e de acordo com as virtudes dos seus progenitores, então os filhos com necessidades especiais deveriam ficar, invariavelmente, com os melhores pais?! Se me considero assim tão virtuosa, não era comigo que deveria ficar um qualquer miúdo, marcado por uma qualquer trissomia?! Ou serei eu suficientemente hipócrita para inverter de repente a lógica do jogo e vir agora suplicar um menino “normal”, porque não faltarão mães a quem a vida pode castigar no meu lugar?!

Envergonhou-me a minha oração, sim. Não era nada daquilo que queria dizer. Nem eu sou um exemplo, nem há filhos de um Deus menor. Na verdade, Deus nem tem nada a ver com isto, como não teve nada a ver com o carro que espatifei há mais de um mês, como não teve nada a ver com o empadão que deixei queimar no forno, e tem muito mais que fazer do que defender-me a roupa que inadvertidamente mancho com lixívia.

Cheguei a arrepender-me de ter feito o rastreio pré-natal integrado. Com a primeira colheita de sangue às 12 semanas e a segunda só às 15, o resultado chegará por volta das 17 semanas de gravidez. Posto isto, temos dois cenários como hipótese: ou o resultado é negativo e fica tudo em paz, gozando finalmente em descontraída felicidade o que resta desta gravidez; ou cai-nos o céu em cima, com um resultado positivo. Então, mais dois cenários possíveis: prosseguimento da gravidez ou interrupção da mesma, caso a amniocentese confirmasse o pior. Mas... às 17/18 semanas de gravidez?! Tanto quanto apurei, esta “interrupção” atinge o limiar da brutalidade e violência que um aborto pode assumir. Tanto quanto julgo saber, tratar-se-ia, na prática, de uma indução de parto de nado morto. Eu teria de parir o filho que não quis, morto. O feto está já demasiadamente desenvolvido para se proceder ao chamado aborto terapêutico, por aspiração e/ou curetagem... Reparem bem que já não aceno com as minhas virtudes, muito pelo contrário... é de defeitos ou vícios de carácter que falo agora (?). Estou a declarar-me incapaz de um aborto, não por pura virtude cristã, mas por simples falta de coragem. Não é a uma mãe plena de qualidades morais que um filho meu, diferente, teria de agradecer a vida, mas a uma mãe frouxa, cobarde... Se calhar era agora que a hipocrisia ou o cinismo voltavam a fazer falta para dizer qualquer coisa do género: “Não acabei contigo, filho, porque já te amava muito, porque o valor da vida é supremo, porque já te queríamos muito junto de nós, viesses como viesses...” Às vezes pergunto-me se não será isto que penso, de facto. Não sei. Estou a ser verdadeira. Sei que não sou capaz. Não sou. Não. Para que fiz então o rastreio? Para que entreguei aquela fortuna ao laboratório? Faria sempre. Pagaria ainda mais, se mo pedissem. Porque, tal como vou querer saber se foi ao X ou ao Y que aquele cromossoma se combinou, para poder dar destino àquelas camisinhas de gola redonda, debruadas a grega cor-de-rosa; também tenho de me preparar para a eventualidade do cromossoma 21 aparecer acidentalmente copiado. Se um menino me obrigaria à reformulação de um guarda-roupa, que dizer de uma trissomia 21?

Sem dramatismos, procuro agora outras palavras para a minha oração. Se a preparação que se impõe para este nascimento tiver de ir muito além dos trapos, Deus, daqui fala a S.: ajuda-me.

26 comentários:

a mãe dos miúdos disse...

tenho andado, embevecida, a seguir as tuas fotografias do tamanho do bebé. tudo tão real, tão palpável... depois vi este post. prenhe de humanidade, crueza, brutalidade... percorreu-me um arrepio e calei um soluço.

este é capaz de ser o texto mais íntimo que li nos últimos tempos.

beijo.

LP disse...

Genial o texto. Pensei neste assunto em todas as gravidezes e a conclusão foi a mesma. Se tem de vir um filho diferente, então estes exames dar-me-ão o tempo para me preparar.

Beijo grande

Raquel disse...

Eu nunca fiz este teste. Em nenhuma das minhas duas gravidezes.
Provavelmente confiei nesse Deus a quem oras.

mãe disse...

eu fiz sempre os rastreios...e disse sempre que não conseguiria ter um filho com uma doença, se a detectasse a tempo. Mas na hora H, não sei se seria tão corajosa como hoje me digo.
Um abraçi

AnaBond disse...

nunca fiz os rastreios, mas sempre disse o que a 'mãe' disse.

vai tudo correr bem. seja como for.

Avozinha disse...

Querida S., comoveu-me a tua oração. Provavelmente a oração que todas as futuras mães fazem, neste tempo em que pensamos poder controlar o destino. São 'apenas' alguns problemas que os exames podem revelar. Nunca mostrarão toda a imensidade de problemas e 'azares' que podem atacar um ser humano, ao nascer ou muito depois. Enfim, na ausência de um seguro de vida saudável, é bom lembrar-nos do Deus que é dono de toda a vida, seja deficiente ou não.

Ana Rute Oliveira Cavaco disse...

beijinhos, entendo e sentiria isso tudo, embora confie em Deus.

Rita disse...

Que dizer depois de tudo dito...?

Deixo-te um beijinho enorme, e peço a Deus que te ajude.

inesn disse...

um abraço.

(fiquei sem palavras)

stiletto disse...

Confiar em Deus é a melhor escolha! Ele sabe o que faz! Percorri este gravidário e fiquei muito comovida! Tenho a certeza que serás a melhor mãe que esse bébé poderá ter, seja ele/ela quem for. O amor por um filho é absoluto e total mesmo que esse filho tenha alguma limitação! Que sejas muito feliz com esse bébé, com a sua mana e o seu papá. Tenho a certeza que serão uma família muito feliz. Voltarei aqui para acompanhar a evolução desta gravidez! O teu post tocou-me num lugar profundo do coração.

Diana Bento disse...

Este assunto toca-me muito. Uma vez disse, grávida do Francisco, que se tivesse um filho diferente, deixaria de acreditar em Deus. Calei-me no segundo seguinte e arrependi-me até hoje. Será muito difícil lidar om uma situação destas´, até porque as coisas têm que ser, obrigatoriamente mesmo que ligeiramente, diferentes, não é? Mas tu, que eu gosto, do fundo do coração, de ler, serás a mãe, que o teu filho dirá um dia, PERFEITA.

Beijo grande.

AnaV disse...

A caminho das 14 semanas de gravidez, o teu texto tocou-me profundamente.
Não encontro mais palavras para te deixar... continuo a "caminhar virtualmente" contigo, pode ser?
Ana

Cristina disse...

Também fiz agora o rastreio bioquímico do 1º trimestre. Deste-me uma nova perspectiva...
Se calhar, nunca pensei nas implicações de um positivo. Fiquei a pensar...

Bjos

Cristina

Jolie disse...

ontem li isto e guardei para hoje o comentário. estava eléctrica demais para absorver isto tudo.

hoje voltei a ler e não consigo na mesma encontrar as palavras que podiam eventualmente combinar com tal desabafo.

Que Deus te ajude.

Mãe da Rita disse...

É complicado... Não fiz rastreio, avançou-se logo para a amnionentese devido à idade (deve ter sido mais barata) mas a espera de quase 3 semanas com o Natal e prendas para o bebé q eu não sabia se haveria de vir foi difícil... E nem pensei em todas as implicações tã oa fundo...Estou contigo.

Raquel disse...

Não sei o que dizer... senti-me angustiada ao ler o teu texto...

Só posso dizer-te: FORÇA!!

Um beijinho enorme... e um abraço bem forte!!

James Black disse...

Não te preocupes. Vai tudo correr bem e terás um filho lindíssimo. E quando olhares para trás e leres o que escreveste... enfim...

Sara CS disse...

Bonito texto, tão sincero. É a Deus que entrego tudo, também o bebé que teria menos uma semana que o teu. A vida é, por vezes, cruel, mas n'Ele encontro a paz necessária nas tribulações.
Que corra tudo bem!

Loucuras... disse...

Texto fantástico, vindo de dentro.
Nada mais a acrescentar. Força.

flower power disse...

engoli em seco...
tudo correrá pelo melhor. há sempre Alguém/Algo/Deus a olhar por nós e de certo, por ti.

. disse...

Também sou assim. Uma corajosa muito cobarde. Mas até nisso há um quê de valentia. Não vai ser nada, verás. No máximo, esse receio vai ajudar-te a reorganizar alguns parâmetros que a sociedade vai obliterando. Falo da minha experiência, dos medos que não passaram disso retirei sempre algo de muito valioso. Bjinho. www.omeupequenobi.blogspot.com

BichinhoS da Fruta disse...

É incrível. Se eu acreditasse que há sempre alguém que nos consegue ler... Assim, considero apenas que existem inúmeros aspectos que ligam as pessoas, embora muitas vezes nos sintamos tão a sós com os nossos pensamentos... Mas certas solidões são intencionais. E eu não estava preparada para ler este post. Só pela verbalização, já demonstraste muita coragem.
Um beijinho.

sombra e luz disse...

Vai correr tudo bem...
Descansa o teu espírito... o bébé agradece e tu aproveitas melhor esse tempo de dúvida e esperança...
Vai correr tudo bem...

Rita Coelho disse...

Ai amiga... Que aperto no peito. Não sei de onde vem esta certeza, mas sinto que vai correr tudo bem.
Um abraço muito apertado, connvosco.

Ana Rangel disse...

Um grande beijinho. Vai correr tudo bem...

Susana Rodrigues disse...

Bolas, não quero chorar mas quando penso nessa partida do destino quando Deus não estava a olhar (se é que isto é possível) seja na minha vida ou na de outra mãe qualquer, a bola que se forma no estômago é tão grande que rasa a vista de água.
Um beijinho,
Susana